1.Para quem não conhece, como é a Márcia enquanto treinadora?
Sou uma treinadora que vejo uma equipa para além das rotinas dos jogos e treinos. Transmito que uma equipa também se forma pelos momentos fora do campo, quer no balneário, quer nos grupos sociais que há fora do treino, com jogadores e até os grupos dos próprios pais. Tento sempre formar um grupo antes de formar uma equipa desportiva, um grupo de amigos, com regras e com princípios que partilham o gosto por uma modalidade. Tento fazer-lhes ver que todos são importantes e que o grupo precisa de todos. E só depois desta base estar formada penso em treinar uma equipa para atingir um objetivo desportivo, seja ele qual for. Alio muito a “brincadeira” à aprendizagem. Acho mais benéfico e facilitador aprender num ambiente e contexto de descontração e no que toca a este ponto, todos os meninos e meninas que foram treinados por mim sabem que há momentos para tudo, nos treinos e nos jogos, e como lhes digo sempre, eles é que definem a confiança que lhes é dada.
Em relação ao treino/jogo, sou uma treinadora apologista de que a decisão é tomada pelo jogador. Sendo ela, aos meus olhos, a mais correta ou não. Depois entra o papel de formador/treinador: fazer ver ao jogador que teria outra opção e com o passar das ações, sentir que toma decisões cada vez mais benéficas e acertadas.
Quando treino escalões mais novos (petizes/traquinas), o facto de ser professora de atividade física e desportivo do 1º ciclo também faz com que consiga adquirir diversas estratégias de ensino-aprendizagem e remete-las para a área o treino, sabendo que não podemos lidar com todas as crianças de igual forma.
2. Quando é que percebeste que estava na altura transmitires os teus conhecimentos enquanto jogadora a jovens atletas, tornando-te treinadora?
Nunca teve um deadline. Desde nova que concilio as duas vertentes. Comecei em 2013, juntamente com o meu irmão, nos petizes do ribeirense. Desde essa altura que estou na modalidade como treinadora e jogadora. Logicamente que acaba por ser mais fácil transmitir conhecimento sendo jogadora. Como jogadora sei que há exercícios e rotinas mais motivantes, então tento transmitir isso para a vertente de treinadora. Se não gosto de algo como jogadora, não vou passá-la para os jogadores, como treinadora. É como colocar um jogador em diversas posições. Um jogador que não seja pivô e passe pela posição, vai saber como gosta de receber a bola. Então quando tiver a jogar a ala, já vai colocar a bola da maneira como gostava de recebê-la. Por razões óbvias, este ano algo teve que ficar para trás e foi a vertente de jogadora, talvez quando os dias passarem a ter mais de 24horas, consiga voltar.
3. Como surgiu a oportunidade de ingressares na família São João?
A oportunidade não surgiu pelas melhores razões. Foi através de um desacato com o clube anterior, no entanto, como se costuma dizer “Há males que vêm por bem”.
No dia a seguir a terminar a minha ligação com o clube, surgiu o convite em ingressar esta família, e num dia tinha a resposta dada. O grupo que me foi sugerido ficar também pesou na decisão. Maior parte jogadores frequentaram as escolas onde trabalho, já me eram todos conhecidos, inclusive a Catarina e o David foram meus alunos. É uma equipa que foi adversária durante 3/4 anos, anos em que partilhámos sempre resultados na escola, nos intervalos, no ATL… e chegou a altura de passar para o lado deles.
4. Como estão a ser estes primeiros meses de São João? Que principais diferenças encontras?
Sem dúvida que precisava desta mudança e surgiu no momento certo! Vamos no segundo mês, mas até ver está a ser favorável. É um clube mais exigente em termos de organização e logística, mas o futsal em Coimbra e no geral, precisa de mais clubes a funcionar assim. Há diferenças também em termos de partilha de ideias. Temos um grupo onde todos os treinadores partilham tudo do seu escalão, o que vem desmistificar o conceito fechado do treino e inovar o conceito de partilha. O objetivo é haver partilha de exercícios e de diferentes formas de trabalhar. O processo de certificação vem dar um empurrão no ponto da organização e a meu ver, a candidatura a entidade formadora devia ser, a curto prazo, obrigatória para todos os clubes.
5. Para além de Treinador de Futsal és também Treinadora de Futebol, vês diferenças nos comportamentos dos jovens praticantes?
Sim, a relação com bola é diferente. A própria bola do futsal até aos sub11 é mais pequena. No futsal têm mais contacto com a bola, devido ao tamanho do campo e ao número de jogadores, não têm tanto espaço para conduzir a bola, o que faz com que tenham de pensar mais rápido, tendo consequentemente menor margem de erro. Havendo mais contacto com a bola faz com que evoluam com mais facilidade a parte técnica. Por experiência própria, a adaptação de um jogador do futsal para o futebol é mais fácil do que do futebol para o futsal. Mas felizmente, no futebol cada vez mais se aposta em encontros de formação em formato de jogos reduzidos, o que faz com que consigamos trabalhar olhar mais para a parte técnica dos praticantes.
Por vezes questionam-me como dá para tudo. Não há ciência nem fórmula: tenho de abdicar ainda mais de algumas coisas a nível pessoal. Mas com organização tem sido possível. Quando gostamos do que fazemos é sempre mais fácil. Infelizmente um dia vou ter que optar por uma modalidade…
6. Por enquanto, estás ligada como treinadora aos escalões de formação, imaginas o teu percurso com escalões mais altos ou preferes estar na formação?
Esta época é a primeira vez que treino sub13. Estou ligada a escalões mais altos, mas na vertente feminina (seleções distritais). O meu percurso, sem dúvida, que gostaria que fosse nos escalões de formação, mas tal como há um ano comentava que não queria passar de sub11 e agora estou com sub13, com o tempo também posso mudar os objetivos e querer ir mais além. No entanto dá-me um “gozo” enorme ver a evolução dos atletas, a relação com bola, o drible… Queremos todos ver Ricardinhos e Ronaldos, ficamos “doidos” quando vemos uma finta de outro mundo, mas os treinadores são os primeiros a cortar a criatividade aos jovens atletas. Infelizmente, a magia do drible perde-se cada vez mais e é algo que me deixa triste. Se na escola temos 12 anos para completar o ensino obrigatório, por que razão queremos ensinar tudo de uma vez a um jovem atleta? As etapas de formação não podem ser queimadas. E é por gostar desta alegria e magia que me mantenho nos escalões de formação.
7. Tanto o futebol como o futsal são vistos como “um mundo de homens”, sentes isso na pele? Sentes que não valorizam o teu trabalho de treinadora por seres mulher? No que diz respeito à evolução deste estigma, desde que começaste a jogar até ao momento, o que mudou?
Por acaso, nunca senti isso diretamente. Sei que há comentários, quando veem que a equipa adversária tem uma treinadora, mas com o passar dos tempos isto vai mudando. E é muito graças a nós mulheres, que afirmamos o nosso lugar e provamos que o futsal/futebol não é um desporto de homens.
De ano para ano este estigma vai desaparecendo. A criação da 2ªDivisão nacional de futsal veio acrescentar uns degraus na modalidade. Cabe também às associações e à Federação continuar a apostar no feminino. Nós jogadoras fazemos o nosso trabalho, mas precisamos de apoio e que confiem em nós. No entanto desde que comecei a jogar até à data, a evolução é notável, basta ver, por exemplo, as seleções nacionais das camadas jovens, há 10 anos era impensável conseguir fazê-lo.
8. Quem é o teu treinador modelo e porquê?
A nível nacional, sem dúvida que é o Nuno Dias. É aquilo a que chamamos “equipa à imagem do treinador”. Fala com tranquilidade, é assertivo, é educado, responde sempre curto e direto. Transmite para fora que a equipa é unida e que trabalham todos no mesmo objetivo. A “imagem do treinador” é algo que tento sempre construir, uma equipa com princípios, valores e com fair-play. Na formação nem sempre é fácil, é um caminho a longo prazo e nem todos temos a capacidade para tal.
A nível mais pessoal, é o meu irmão. Grande parte do que sou hoje como pessoa e treinadora devo-lhe a ele. Os ensinamentos, as visões do treino, os conselhos… Não há um almoço de família que não se fale dos treinos ou dos jogos ao fim-de-semana. É rara a chamada telefónica em que um dos temas não seja futebol/futsal.
9. Por fim deixa uma palavra para os nossos sócios e simpatizantes e para os adeptos da modalidade em geral.
Não deixem de apoiar o nosso futsal. Acompanhem as equipas desde a formação à equipa sénior e nunca esquecer que o clube precisa de todos nós. Com o regresso do público, apareçam no pavilhão e acompanhem os jogos.
A nossa modalidade é realmente incrível e os adeptos fazem parte da estrutura de qualquer equipa. Cabe a nós, fazer com que o futsal evolua.